PREÂMBULO
O aturado trabalho de investigação conduzido por Carlos
Maduro, no horizonte do epistolário de António Vieira, expressa uma
contribuição decisiva para a atualização do estado da questão, com vista a uma
futura edição crítica das Cartas do grande jesuíta.
Partindo do meritório esforço de João Lúcio de Azevedo,
que entre 1925 e 1928 publicou três grossos tomos com 710 cartas de Vieira,
naquela que é, até agora, a edição mais exustiva do longo epistolário de
Vieira, Carlos Maduro alarga muito o âmbito da investigação, tendo por base não
só a bibliografia publicada depois dessa data, permitindo-lhe identificar mais
setenta e cinco cartas não incluídas na edição de Lúcio de Azevedo, como também
por via da investigação nos fundos das nossas bibliotecas, que lhe deram o
conhecimento minucioso desta face tão cativante da vida e obra de Vieira.
Nesta conformidade, o estudo de Carlos Maduro é o que até
ao momento parte de uma base mais alargada do epistolário vieirino e o que,
como tal, nos permite aceder a uma perspetiva mais completa das Cartas, oferecendo-nos não apenas
a novidade da sua interpretação no âmbito da prática discursiva e da teoria
epistolar do barroco, como também um mais pormenorizado e completo conhecimento
do corpus textual.
Tratando-se de uma tese de doutoramento, não será de
estranhar que as exigências do método o obriguem a uma dilucidação da tradição
epistolar na cultura ocidental, de que Vieira foi por essa via parte ativa,
situando a análise não tanto na perspetiva mais tradicional e comum de fonte
documental para reconstrução da biografia de Vieira ou como elemento auxiliar
para o estudo da sua produção literária. Surgem por isso as cartas estudadas
como «paradigma da retórica epistolar do barroco», atendendo, por isso, às tão
ricas como complexas questões da arte retórica, atinentes à inventio, exordio, dispositio, lugares, narração , estilos e fins.
Mas para lá destes aspetos mais técnicos da análise da
epistolografia de António Vieira, é também através dela que nos deparamos com a
dimensão do seu autor como homem do mundo, com o seu cosmopolitismo, a sua rede
de relações corporizada num rico e influente universo de destinatários, a
riqueza intelectual manifestada nas fontes da inventio, a que acresce o
interessante capítulo dedicado à dilucidação e interpretação das metáforas
utilizadas por Vieira na sua escrita, traduzindo a peculiar experiência de homo viator, tantas vezes
retirada da vivência da viagem marítima, da tempestada e do confronto com a
«natureza dificultussíssima».
Por outro lado, a interpretação e análise das Cartas que
aqui nos é dada permite também ao leitor o estabelecimento de interessantes
pontos de contacto com o pensamento de Vieira e com os temas mais candentes da
sua vasta obra, expressos também nos Sermões e obras proféticas. Aqui nos
deparamos com o Vieira político e diplomata, seduzido com os jogos da
diplomacia europeia e com a estratégia das guerras intestinas que assolavam a
Europa, «sem cabeça nem união»; com o Vieira perseguido pelo Tribunal do Santo
Ofício, o qual, como dizia, sendo santo pelo nome não assegurava a santidade
nem a ciência aos seus juízes; pelas Cartas vemos também a sua conceção do mundo como
teatro e da vida como comédia, no qual havia que representar um papel digno,
com a arte e o engenho para lidar com a suspensão e a expectação; é também o
Vieira seduzido pelo imaginário barroco e pelo maravilhoso cristão, tão afeito
à interpretação de prodígios e presságios astrológicos, nomeadamente os que se
articulavam com a interpretação do significado astrológico dos cometas, a que
tanto se dedicou, sem, enfim, esquecer o Vieira visionário, o Vieira humanista,
defensor da dignidade dos povos descobertos e escravizados sem título legítimo
e em guerra injusta, pois que em matérias tão relavantes como as da soberania e
da liberdade, colocava no mesmo plano a coroa de ouro e a coroa de penas, e
como finalidade principal do império a evangelização e o ius praedicandi.
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